“Teus
amigos estão sorrindo de tua última resolução. Pensavam que o suicídio fosse a
última resolução. Não compreendem, coitados, que o melhor é ser pornográfico”
– Carlos Drummond de Andrade
Saí
da Justiça Comum com sensação de surra. Resolvi conhecer também a Justiça do
Trabalho. Ao entrar no prédio, o detector de metais berrou. Eu olhei para o
pessoal da portaria, que fez de conta que não me viu, dando a impressão de que
não acreditavam em fantasmas.
Dentro
do elevador, homens de terno comentaram que na 3ª Vara havia uma juíza muito
bonita. Fui para o 9º andar. A primeira audiência começou pontualmente às
8h30min. A última estava agendada para 16h45min. Ao todo, seriam 25
audiências em um só dia. A meritíssima trabalhava na parte da manhã e na parte da
tarde e punha-se a decidir, em seguida, adentrando na noite, os casos com que
se deparou durante aquela fatigante jornada.
Ela parecia
uma jovem obra-de-arte vestida sob molduras bem formais equilibradas por um par
de scarpin vermelhos da cor das unhas.
Tinha altivez tão natural como o ato de respirar. A moça conseguia harmonizar delicadeza e austeridade ao se comunicar paciente e gentilmente com toda aquela
gente uniformizada de guerra. Seus lindos olhos exalavam uma sensibilidade
vulcânica. A voz era musical, tão suave, que me convidou a uma embriaguez de
sono difícil de administrar. Não resisti. Fechei os olhos: eu a levaria a
África para vermos, de perto, a dor implacável de crianças diante da fétida insensibilidade
de quem pode, mas não quer ajudá-los, e, diante disso, nós nos abraçaríamos
como se fosse o fim do mundo, e partilharíamos nossas lágrimas solidárias; eu a
levaria em campos de concentração nazistas para comprovarmos quão desconcentrados
foram os protagonistas daquelas tragédias desconcertantes; eu a levaria ao circo:
perceberíamos juntos que todos os palhaços, com seus risos, e trapezistas, com
seus voos arriscados, estavam guardados em gavetas bem fechadas dentro de nós
(de repente, senti que sua casa tinha muros bem altos, contra intrusos, e era
guarnecida por janelas à prova de maledicências e blindada aos olhares famintos
de desejos que, induvidosamente, como o som do detector de metais, não a incomodava mais).
A
aliança na mão esquerda atraiu meu olhar como um ímã. Eu não hesitaria em
pecar: se ela fosse minha, eu a faria tão feliz, que ninguém iria acreditar que
ela realmente existia.
Eu
sei que minha inteligência folheada a ouro foi atingida por uma descarga
elétrica que me trouxe de volta ao purgatório. Eu sabia que ela nunca me pediria em
casamento, mas quem seria louco de se casar com uma juíza que trabalha mais de doze horas diárias (veio em mim a lembrança da fábula da raposa e da uva).
A
verdade é que fiquei meio perplexo e muito atordoado: eu não imaginava que pudesse existir uma juíza tão linda como
aquela doutora.
Um
sujeito se aproximou de mim, na sala de audiências, e me fez abrir os olhos. Só
deu tempo de ver aquela beldade se levantar para retornar aos labirintos dos
conflitos jurídicos, bem menos aventurados do que os caminhos do amor ... veio um
impiedoso remorso de não ter tirado nem uma fotografia. Eram 21 horas. Exigi de
mim que meu idilismo besta levasse meu corpo de volta às ruas para escutar o
ronco grosseiro dos motores de ternos rosnando em perseguição a vestidos epilépticos
sob perfumes egoísticos de leucócitos esquizofrênicos... para voltar para mim, na manhã seguinte fui à praça fotografar!
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