“Miséria. Baixeza do homem até submeter-se aos animais, até os adorar”.
Pensamentos. Blaise Pascal
“Meus olhos são pequenos para ver o general com seu capote cinza
escolhendo no mapa uma cidade que amanhã será pó e pus no arame” – Carlos
Drummond de Andrade
“Fardado, Você também é explorado – aqui!, Por que você não abaixa essa
arma, O meu direito é seu dever, por que você não usa essa farda, Pra servir e
pra proteger (...) Ponha-se no meu lugar, ponha-se no seu lugar, Ponha-se no
meu lugar, no meu lugar”- Titãs.
Eu sempre disse que é preferível uma
democracia falha do que uma ditadura. Saiu até nos jornais. Literalmente! Eu
repito: uma democracia falha é infinitamente melhor do que a ditadura e a
própria democracia, que nunca deve funcionar plenamente. Por isso eu tenho
certeza de que os tempos de hoje são muito piores do que os de antigamente.
Hoje em dia acabaram com os atos institucionais. Morro de saudades do AI-5 . Na atualidade, a sociedade está hipnotizada por aiphones, aipédis, aipódis! Os meninos nem sabem mais conversar! É só teclar o dia inteiro. Acaba que, por falta de homens, as meninas estão até se experimentando, tenente! A verdade é que os pais perderam o controle. Basta ver que as escolas esculhambam com a educação dos filhos dos nossos filhos. Até excluíram das grades curriculares a disciplina de Moral e Cívica. É o caos! (O Tenente meneia a cabeça em sinal de solidariedade).
Nem se tem mais, hoje em dia, a
liberdade de prender e torturar o resto de comunistas que andam por aí. Ninguém
mais tem respeito por nós, os militares, que sempre garantimos a segurança da
nação contra os ambiciosos projetos de dominação bolcheviques.
__ Sim, Senhor! Disse o Tenente. __ Os tempos
mudaram, General! Ninguém dá mais valor aos heróis de verdade!
Você veja só que situação: em 1960
leu estava superpreocupado como nunca com o nosso Brasil, este impávido
colosso, enquanto o Presidente João Goulart, meu compadre, abria as portas do
gabinete presidencial para um bando de sindicalistas e para a gentalha do
partido comunista. Ora, quem fala em reforma agrária e distribuição de riquezas
não pode ser levada a sério. Aquela gente queria mesmo é acabar com
o nosso Brasil. __ Sim, Senhor. Disse o Tenente! Queria sim! E se não fosse
pelo Senhor, eles teriam conseguido!
Francamente, o Popeye (General Mourão
Filho) fez muito bem em mandar as tropas para o Rio de Janeiro! E depois dele o
efeito veio em cascata. Você acredita que o João Goulart , em 31 de
março de 1964, ainda teve a audácia de me ligar, coitado, para pedir meu apoio
contra a revolução? Sabe o que eu disse? __ Compadre, eu te apoio, sim, mas
você precisa por todo esse bando de comunistas, urgentemente, para fora do seu
governo! Essa gente é o lixo do detrito! Jogue-os no vaso!
Tenente, como é que um Presidente da
República pode ter gratidão e honestidade ideológica? Sabe o que o Jango me
respondeu? __ Não posso trair meus camaradas! Eu cheguei ao governo
por conta do apoio dos sindicalistas e comunistas. Não vou abandoná-los agora.
Aí eu arrematei: __ Se é assim, compadre, não podemos fazer mais nada! E o
Jango foi que nem galinha assustada voando para o Uruguai – terra da canalhagem
vermelha – enquanto nossos zelosos militares chegavam na Guanabara armados até
os dentes (os olhos do interlocutor brilhavam que nem constelação).
Pois é, Tenente, entre 2014 e 1960,
eu fico com os velhos e bons tempos. Naquela época havia a saudosa escuderia Le
Cocq, que fazia um exemplar serviço de limpeza, pois que pegava a bandidagem e
lhes dava um tratamento condigno: era pau-de-arara a torto e a direito e ainda
se produziam uns presuntos por aí (ele libertou um sorriso de favelado quando
ganha a primeira bola de futebol).
Pois eu morri em 1976, aos 95 anos,
tenente! Uma insuficiência respiratória infalível! Mas enquanto vivi, eu sempre
zelei pela saúde deste nosso Brasil. Ah, se zelei! Com aquele um milhão e
duzentos mil dólares que eu recebi do governo dos Estados Unidos para apoiar a
deposição do Presidente da República, eu comprei um bocado de fazendas para
ajudar o Brasil a se enriquecer. Eu amava aquelas fazendas, menos uma, lá do
interior do Estado do Espírito Santo, que tinha plantação de cacau. Você
acredita que um trabalhador de uma das minhas fazendas – que eu devia ter
sumido com ele –, me levou na Justiça? Quando isso aconteceu eu era Ministro da
Guerra, e fiquei tão revoltado com tanta ousadia, que eu jurei que aquele
caboclo nunca ia ver a cor do dinheiro. Você acredita que o oficial de justiça
chegou a ir lá na fazenda e me disse: __ General, o Senhor assina este mandado aqui,
porque o Senhor está sendo citado! Eu lhe disse: __ Não assino não! Só assino
por ordem de meu superior, que é o Ministro do Exército! Ele se virou e foi
embora. Quando ele virou as costas, eu cheguei a engatilhar o revólver,
tenente...
Veja só onde chegamos? Hoje, minha
honra e história estão sendo manchadas, tenente! É um absurdo: uma advogada,
com mais culhões do que muitos de seus colegas, ressuscitou a causa, e a
Justiça do Trabalho obrigou meus herdeiros e as pessoas que compraram a fazenda
da minha viúva a pagar ao Anaclínio – era este o nome da peste! – mais de dez
mil reais?! Isso é uma vergonha! Não é pelo dinheiro, você sabe disso, Tenente!
Dez mil é merreca prá mim! A questão é moral! Como é que pode um Marechal do
glorioso Exército Brasileiro ser obrigado a pagar alguma coisa para um
trabalhador rural? É o cúmulo da insubordinação! Se eu ainda estivesse no poder
ia fazer mais uma revolução: __ Prenda o juiz e corte-lhe a cabeça. O mundo
está mesmo perdido, Tenente. Estão acabando com a impunidade! O Tenente balançava a cabeça em sinal de aprovação.
Ainda bem que eu morri, tenente,
porque eu não conseguiria viver no mundo atual. As coisas estão completamente
fora de lugar!
O tenente diz: __ Apesar de tudo, o Senhor ainda é
um herói nacional, mesmo que esteja morto! Aliás, se o senhor me
permite, eu acho mesmo é que o senhor devia ser beatificado, porque fez o
milagre de impedir que os comunistas tomassem conta do Brasil. Se não fosse
pelo senhor, a bandeira nacional estaria pintada de vermelho! Depois, o Senhor
tem um currículo invejável: foi até deputado federal e...
O telefone aborta os elogios: __ Alô! Sim, só um
instante, vou ver se ele está? __ General, é para o Senhor. É DEUS! __ Tenente,
diga a ELE que eu não posso atender agora, que estou muito ocupado, que é para
ELE ligar amanhã! O General, irritado, deixou o Tenente pensando sozinho e
retornou ao mais profundo subterrâneo rumo à fornalha!