sábado, 28 de junho de 2014

Aventura III

"Eu não devia te dizer, mas essa lua, mas esse conhaque, botam a gente comovido como o diabo"  
- Carlos Drummond de Andrade

É impressionante o efeito que as roupas causam no ego: lá estava eu, com sapato preto engraxado, meia escura, terno cinza chumbo, que herdei de meu avô (que se orgulhava de dizer que era de tropical inglês), camisa branca de linho e gravata vermelha: toda aquela parafernália me dava a sensação de ser mais gente do que de costume.

Havia muitas pernas na sala de audiências, porque várias acadêmicas de direito compareceram para satisfazer exigências estudantis.  A coreografia era básica: umas ao lado das outras, os joelhos apontavam na mesma direção; as mãos seguravam celulares enquanto os indicadores, rápidos, pulavam nos teclados e, por fim, o bocejo de uma provocava um efeito em cadeia. A cena farsesca merecia ser fotografada, mas eu acidentalmente estava desprevenido...

A moça que estava ao lado do juiz chamou as partes pelos nomes. Elas vieram com seus respectivos advogados e sentaram-se à mesa. A senhora que estava do lado esquerdo parecia assustada de tão tensa; o senhor, que ficou defronte, se sentia em casa.

A autora da ação, que se chamava Ana Paula, disse ao juiz que: tinha 33 anos de idade; foi obrigada pelo patrão a pedir conta; estava sentindo muita dor na coluna por causa do volume de trabalho prestado de 8 às 19 horas. A senhora tinha o rosto amargurado, como se as dores não lhe dessem trégua; ela parecia ter quase sessenta anos. Havia um jeito sincero de ser e de dizer, a tal ponto que a jovem senhora velha não hesitou em admitir que nunca havia sofrido nenhum dano moral nem humilhações... nesse instante o juiz fez uma cara de interrogação e, na outra banda, o dono da empresa aprisionou um sorriso que queria gargalhar sem censura...

Eu logo vi que ali duelavam a ingênua esperança de quem quer justiça, de um lado, e, de outro, a arrogante velhacaria ambiciosa de gente que não hesita em explorar o trabalhador.

De repente – enquanto os advogados discutiam se deveria ser pago mil ou mil e quinhentos reais –, a moça desabou em lágrimas: veio lá do fundo da alma dela uma voz hercúlea e imponente que atirou o cinza chumbo do meu terno de tropical inglês para todos os lados atingindo com mira telescópica a indiferença de todos nós. Ela esbravejou: __ A empresa precisa entender que funcionário não é cachorro!

Se você quer saber o significado de estar com os nervos à flor da pele, vá assistir a uma audiência na Justiça do Trabalho. A sensação é a de que tal solenidade funciona como um barril de pólvora, porque se alguém acender um fósforo, tudo pode ir pelos ares. 







terça-feira, 24 de junho de 2014

Aventura II

"O bom é ser inteligente e não entender. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que nao entendo"
- Clarice Lispector

Depois que derrubaram as torres gêmeas em Manhattan, a perspectiva de possuir mente sã é uma loucura tão em moda como a dengue.

Talvez seja por causa dessa histeria globalizada que, ao chegar ao prédio do tribunal, os agentes de segurança me viraram de cabeça para baixo e me sacudiram tanto que do corpo desabaram chave, chicletes, impressão digital, celular e uma caixinha de preservativos, sabor morango e chocolate, que uma felina adquiriu no museu do sexo, em Nova York, e me presenteou no dia do meu aniversário, com tanta euforia, como se tivesse descoberto a pólvora, recomendando que eu jamais a usasse, pois que, segundo ela, eu deveria guarda-la como talismã (quem entende as mulheres?).

A verdade é que o truculento comitê de recepção ficou meio desapontado, apressando-se em esconder uma gargalhada em dó maior, ao constatar que eu não batia bola com a seleção do Bin Laden. Tenho certeza de que se houvesse, na portaria, um detector de boas intenções, eu teria sido exemplarmente preso em flagrante delito.

Apressei-me para encontrar meu amigo estagiário, que trabalhava no gabinete de um desembargador. A periferia o exportou para um dos núcleos do poder. Era um sujeito que não media esforços para ser gente nessa vida. Ele já tinha experimentado vários tipos de drogas – da maconha ao crack –, e, agora, estava viciado em trabalho, incumbido de receber autos de processos e elaborar as decisões que, após, deveriam ser encaminhadas ao juiz para que ele as examinasse.

Eu confesso que estava um tanto perplexo, porque não conseguia entender bem esse mecanismo decisório: um aluno de uma faculdade privada de Direito, que nem bacharel ainda era, estava incumbido de produzir projetos de decisão jurídica. Por mais estudioso e curioso que meu amigo fosse – e era! – ele não teria, a meu ver, maturidade intelectual e de vida para aquela espinhosa missão.

A verdade é que meu gentil amigo havia me prometido apresentar o cacique, com quem eu queria marcar uma entrevista com jeitão de raio xis. Logo que nos encontramos, percebi que ele não estava bem. Havia um olhar de revolta acompanhado de um sorriso torto de manicômio. Ele vomitou: estou com um caso dificílimo para julgar. É um acidente do trabalho. Eu fui até o desembargador e disse que precisava trocar umas ideias com ele para resolvermos essa urgente questão.

 A cena que se seguiu foi a seguinte: o desembargador dirigiu-lhe um olhar nazista e disse: __ Você tem um limão? Faça uma limonada, ora essa!  E saiu rapidinho. Eu vi o olhar do rapaz murchar como uma flor com hérnia de disco!