segunda-feira, 18 de agosto de 2014

AVENTURA XIII – PRIMEIRO ROUND: A PETIÇÃO INICIAL


“É perigoso dizer ao povo que as leis não são justas, pois ele só obedece a elas porque acredita que são justas. É por isso que é preciso dizer-lhe ao mesmo tempo que é necessário obedecer a elas porque são leis, como é preciso obedecer aos superiores não por serem justos, mas por serem superiores. Assim qualquer sedição fica prevenida, se se puder fazer entender isso e que (essa é) propriamente a definição de justiça”. Blaise Pascal

Eu ouvi dizer que o povo das cidades gosta da luz da lua porque tira dela um pouco de poesia. Pois eu não imagino como isso seja possível. Não que eu seja um homem insensível. Mal mal eu tive o abecê, porque minha vida era só trabalhar e trabalhar e trabalhar, mas, ainda que eu quisesse ver mais luz do que de fato a lua enviava, a sombra dos jagunços causava penumbra na minha vida.

A fazenda foi vendida de porteira fechada. O general pagou um preço que também comprava a miudeza da minha vida distribuída em pedaços por mais de 100 alqueires de cacau dentro de 200 alqueires de terra.

Eu comecei a trabalhar com oito anos, mas desde os treze eu lido com cacau. A labuta começava quando o sol surgia. Sei tudo sobre plantio, manutenção, colheita e beneficiamento de lavoura cacaueira, que precisa de muito sol e muita chuva para florescer, que nem a gente mesmo. Sem cacau não tem chocolate, que dá muita energia para o homem fazer a família crescer.  

Eu acho que a amêndoa do cacau deu muito dinheiro ao general e ao coronel, que só chegavam na fazenda de avião. Eu carregava a mala deles para fazer um agrado, mas aquela gente nunca deu nem meio litro de leite para ajudar minhas crianças.

Naquele tempo nem rádio tinha. Chegava à noite, era tudo breu. A gente fazia filho na escuridão. Se alguém ficava doente, o remédio era mais trabalho. 

Eu ficava encantado com a farda dos homens. Já tive sonho de calçar botas. A gente só andava descalço. A sola do pé ficava tão grossa e dura que, se pisasse em cobra, a peçonhenta morria na hora.

Não havia fome na fazenda. A gente aprendia rápido a sobreviver. A comida era feita de carne de caça, capivara gorda e paca. A gente apanhava o bicho, que era banha pura, lascava sal, cozinhava no feijão, rasgava aquilo e caia no mato para trabalhar. Chegava no final de semana, eu botava a roupa em pé. De tão suja, ela ficava empinadinha, que nem soldado.

Dia de pagamento devia ser dia de alegria. Não era. O coronel embuchava o dinheirinho e enfiava no cano do revólver, que punha em cima da mesa. Ele punha um sorriso esverdeado no canto da boca e ficava ali, esperando quem tivesse coragem para ir lá receber. A maioria dos trabalhadores via só um pouquinho a cor do dinheiro e fazia de conta que a vida valia a pena.

Toda fazenda tinha armazém, uma espécie de barracão, com mercadoria espalhada debaixo da mesa e no chão e em prateleiras. Tinha manjuba, toicinho, carne seca, arroz, feijão, requeijão. Chegava sábado, a gente ia comprar no armazém, aí eles descontavam dos nossos salários. No final do mês, eles davam o que queriam. Não tinha prestação de contas. Se não comprava o patrão punha na conta que tinha comprado e dizia: tava aí, não comprou porque não quis, por isso tem de pagar.

Eu não tinha medo de animal não! A gente era tudo selvagem mesmo! Quando o general e o coronel chegavam, eu andava na fazenda com eles. Quem anda com essas feras não sente medo de onça nada! Eu sei que o homem derrubou o presidente porque ele gritou reforma agrária no Brasil... o Getúlio Vargas foi o dono da carteira de trabalho, mas no lugar onde nós morava a lei não tinha estrada para chegar não! A lei vinha do céu, fardada, enfeitada com espada, chicote na mão e revólver na cintura.

O sujeito era brabo mesmo. Só não bateu nimim   porque Deus deve ter falado, num bate nele não... Mas uma vez o coronel bateu tanto num sujeito que eu achei até bom, porque o sujeito era muito puxa-saco. Desceu o coro porque ele tirou a caminhonete do lugar. De chicote. A pessoa não reagia, senão, naquele tempo, ela era morta na frente de todo mundo e ficava nisso mesmo.

O coronel me dispensou cara a cara... isso porque um dia ele chegou nervoso na fazenda e disse que eu tinha de por na hora os homens para roçar cacau. Eu olhei na cara dele e disse: __ O senhor não é fazendeiro ainda não. O senhor tá aprendendo ainda. Agora, o senhor, no final do mês, vai pagar a turma com o quê? O senhor é coronel lá no quartel general, aqui na roça de cacau quem manda sou eu!

O coronel me mandou sair da fazenda em oito dias. Não me deu nada além de uma Carta de Recomendação, onde disse o que todo mundo já sabia: que eu era honesto e trabalhador. Depois, ele pôs os jagunços para rondarem minha casinha de tábua e fazerem barulho na madrugada. Eles ficavam jogando lança no jardim. Minha esposa estava grávida de oito meses, e de tanto medo, cismada, ela perdeu a menina.

Eu vendi os móveis e uma cabrita que dava leite para meus filhos para dar conta da mudança. Eu me revoltei por causa disso. Catei “devogado”, e não encontrava nenhum que quisesse pegar a minha causa.  Eles diziam: “Esse homem vai jogar uma bomba em Linhares e acaba com nós tudo”.

Um dia eu disse para o coronel: “Se quiser me matar atira na cara, porque homem que é homem não mata nas costas, não!”

Gente da roça é tudo bobo... a gente não tem ganância, quando morre só leva a roupa do corpo...

Eu sei que não tendo “devogado” o juiz não pode fazer nada. Os “devogados” tinham medo do homem... meu “devogado” começou, depois tremeu, e mudou para a Guanabara. O processo ficou parado. Só voltou a andar depois que a filha da minha vizinha cresceu. Ela trabalhou de babá desde oito anos, depois virou doméstica em Vitória, e resolveu virar “devogada”, com muito sacrifício, mas o que ela quer mesmo é ser juíza do trabalho.

Eu não entendo como onze anos de trabalho foram resumidos pelo “devogado” em menos de duas folhas na tal de petição que ele fez para o juiz. Deve ser porque a vida da gente, que só faz trabalhar na roça, tem o mesmo enredo o tempo todo ou, talvez, fosse porque meu “devogado” queria simplificar tudinho para o processo andar mais rápido, quem sabe?

                                               Eu levo uma cicatriz no coração! Só Deus prá saber o que eu passei na Fazenda Piraquê! Mas hoje eu tenho minha casinha e ajudei meus filhos, e não tem uma telha que tenha sido comprada por conta do trabalho meu na fazenda do general e do coronel.