“Aquele
que anda de rastos como um verme, não se pode queixar de que foi calcado aos
pés”
– Kant
Eu
entrei na sala de audiências e procurei logo um cantinho em que pudesse ficar tanto
quanto possível meio clandestino. Já estava sentindo falta daquela adrenalina.
Aprendi que ser o primeiro a chegar não é aconselhável. Além disso, passei a
buscar salas de audiências que contassem com a presença de mais pessoas. Assim seria
menor o risco de eu entrar na alça de tiro armada pelo olhar impaciente da
maioria dos juízes que conheci, facilmente antipatizados com a presença de
gente interessada em ver os acontecimentos ao seu redor.
Lá
estava eu, acostumado com o enredo comum das audiências: a busca insistente do
acordo ditava a direção dos diálogos. Ao
que pude perceber, a moça, que não conseguia olhar para lugar nenhum, de tão
nervosa que estava, queria que o juiz reconhecesse que ela trabalhou como
empregada para o senhor que estava do outro lado da mesa, que parecia um
deputado em época de campanha, de tão articulado, tendo dito que nada devia
porque, na verdade, ele deixou a moça morar na sua casa para ajudá-la, como se
ela fosse sua filha.
O juiz não se mostrou surpreso. Parece que ele estava habituado com aquele tipo de argumentação emocional, que foi logo rebatida assim: __ Escuto isso aqui quase todos os dias. Se o senhor realmente quisesse ajudá-la, não teria exigido que ela limpasse sua casa, lavasse suas roupas, preparasse sua comida e sei lá mais o que. Portanto, essa sua conversa não me impressiona nem um pouco!
O
senhor levantou os ombros e olhou para o juiz espantado, como se tivesse ouvido
o maior absurdo do mundo. Em seguida, ele mergulhou no pensamento e, ao voltar
à superfície, abriu mansamente uma bíblia em cima da mesa e disse, em voz de
discurso: __ Eu aceito pagar esse valor que Vossa Excelência sugeriu. Mas eu só
tenho um medo (e apontou o dedo indicador para a moça): o de que ela saia desta
sala e, arrependida, se enforque como Judas, de tanto remorso.
De
repente o tempo fechou! Caramba, eu senti que o juiz segurou o vômito! A sua
face enrubesceu. Ele fechou os punhos e deu uma porrada muito forte na mesa que
lhe deve ter machucado a mão. E disse, imponente, seguro, enérgico, sem hesitar,
com muita elegância e austeridade, com voz de galã de cinema: __ Eu não admito
que o senhor venha fazer chantagem emocional com base na sagrada escritura. Eu
não admito que o senhor invoque o nome de Judas Iscariotes para constranger a
trabalhadora que não recebeu os direitos trabalhistas que seu pecado de ganância
surrupiou.... E aumentou o tom de voz: __ Feche agora esta bíblia! E saia desta
sala de audiência. A partir de agora só seu advogado tem a palavra.
Veio
rapidinho a lembrança do episódio da expulsão dos vendilhões do templo por
Jesus. Eu estava de acordo com a atitude zangada do juiz: tanto a casa do
Senhor quanto a casa da Justiça não podem ser transformadas em covil de
comerciantes empenhados em desvirtuar a destinação do lugar. Ora, usar a bíblia
para humilhar e explorar a trabalhadora é o cúmulo da sacanagem capaz de
despertar a mais perfeita e justa indignação de quem quer que seja.