quinta-feira, 17 de julho de 2014

Aventura IX

“Eu estou aprendendo tanto com meus erros que estou pensando em cometer mais alguns” 
– Ashleigh Brilliant


Não são muitas as maneiras de se enriquecer nessa vida. A primeira e mais comum delas passa pelo casamento com gente muito abastada; a segunda, tem a ver com o dispêndio de enorme carga de energia mental e física através do trabalho perseverante; a terceira, de menor esforço, nasce da sorte nas loterias e, por fim, a outra forma de angariar riqueza parte, em tese, do sucesso em processo judicial de indenização por danos morais.

Eu me lembro de ter visto uma reportagem sobre o caso de uma faxineira que trabalhava no palácio do governo e tinha sido chamada de negra ladra e safada por sua chefe a suposição de que teria furtado cento e cinquenta reais além de um anel da esposa do governador.

A curiosidade foi tanta que me apressei a identificar o processo judicial. Ao examiná-lo, constatei que o contrato da servente tinha pouco mais de seis meses de duração. A juíza, bem morena, após ouvir testemunhas, deu razão à moça, que se sentiu discriminada em razão da cor e, por isso, fixou o valor da indenização em quatro mil salários mínimos que, hoje, equivale a R$2.896.000,00; em outras palavras, a servente receberia indenização superior a dezesseis mil reais por dia de trabalho prestado. Para alcançar aquela soma, acaso recebesse um salário mínimo mensal, ela precisaria de ao menos quatro reencarnações ou mais de 333 anos de vida, sem gastar nenhum centavo, para enriquecer. 

Eu imagino a imensa alegria que a sentença produziu no espírito da moça. Alegria que acendeu toda a vizinhança: a alma dela, em carnaval, deve ter aberto um sorrisão sem precedentes no mundo dos trabalhadores braçais. Ao se ver no espelho, ela terá visto a cor de ouro tomar conta de sua pele. Seus bolsos devem ter ficado numa agigantada agitação como ondas marítimas revoltas em dia de ressaca. Não poderia ser diferente já que, se ela recebesse aquela mufunfada toda, seria projetada, sem pedras no caminho, como um míssil, da classe pobre para a cúpula da classe média alta. Com o novo status, ela obteria todo o patrimônio material e moral que gente sã normalmente ambiciona: casa nova, carro na garagem, dezenas de bolsas e sapatos, televisão grandona, marido e ócio, muito ócio.

No entanto, por causa de um recurso, o caso foi julgado de novo, e os outros juízes, bem branquinhos, não hesitaram em reduzir o valor da indenização para R$144.800,00 que, ainda assim, é muito dinheiro para quem está acostumada a ser remunerada com pouco mais de um salário mínimo mensal.

Eu imagino o enorme grau de frustração que se abateu sobre a moça. A tristeza que deve ter tomado conta de seu coração seria impagável. O drama, no entanto, não fica só nisso. O que também causa enorme perplexidade é ver a direção que a cabeça dos juízes levianamente toma segundo as fases da lua. O tamanho da insegurança que ronda a fixação das indenizações por danos morais prova a inexistência de um bom senso médio. Sem dúvidas, a enorme descoincidência e desproporção dos valores da indenização fixados pelos juízes demonstra que estamos no terreno do arbítrio e das incertezas. Engraçado que sentença vem de sentimento que, às vezes, fica fora do esquadro. O juiz nunca pode ter a indiferença do carrasco, porque empresa tem tanta vida quanto gente!

Há muito de gangorra nos processos judiciais. A gente tem de buscar equilíbrio entre tempestades e banho de mar. De uma coisa eu tenho certeza: apesar de ter esquecido o coração na casa da namorada, ainda dá para contemplar a lua crescendo da janela do meu quarto!






terça-feira, 15 de julho de 2014

Aventura VIII

“Quem luta com monstros deve velar para que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti” 
- Nietsche.


Fui acordado na manhã da segunda-feira com uma dor de cabeça infernal, latejante, produto de um pesadelo cuja realidade aparente e cruel só poderia ser medida por supercomputadores. Eu tinha me visto no programa do Faustão, massacrado impiedosamente por olhares carnívoros de uma plateia integralmente composta por advogados e advogadas com insaciável sede de injustiça e juízes vestidos com uma roupa preta engraçada que lembrava bruxos. Enquanto isso, a Cláudia Leite, vestida de galinha pintadinha, cantava a música “Go to hell”, do roqueiro Alice Cooper, enquanto os causídicos, todos sem paletó e gravata, acendiam velas vermelhas, e reivindicavam a volta da inquisição, tanto quanto a da guilhotina.

A coisa estava muito feia: eu havia sonhado que os juízes marcavam audiências com intervalos de cinco em cinco minutos entre uma e outra, e sempre chegavam atrasados no local de trabalho, que frequentavam apenas duas vezes por semana e, pior ainda, durante os diálogos, comportavam-se como alienígenas, na medida em que diziam um monte de coisas que ninguém entendia.

Eu havia sonhado que os desembargadores iam apenas uma vez por semana nos tribunais e compareciam nas sessões de julgamentos sem a prévia leitura das questões e teses defendidas pelos litigantes.

Eu havia sonhado que em todos os processos judiciais os advogados davam um jeitinho de inventar fatos para pedirem indenização por danos morais em proveito dos seus clientes que sequer sabiam o que isso significava e, por isso, os juízes andavam estressadíssimos porque não aguentavam mais tanta falsificação processual, tanta vitimização, tanto abuso e tanta mentira.

Eu sonhei que os juízes estavam delegando aos servidores a elaboração de todas as decisões que eles, e apenas eles, deveriam tomar.

Eu sonhei que havia juízes que levavam anos para decidir os casos que lhe eram submetidos e, depois, o tribunal anulava a sentença, dizendo que ela estava desfundamentada, e mandava o mesmo juiz julgar de novo o caso, o que não ocorria por um tal de “motivo de foro íntimo”.

Eu sonhei que havia muitos parentes de juízes que ingressavam nos tribunais sem concurso público e ocupavam cargos de direção com salários superiores àqueles pagos aos próprios magistrados.

No estertor, eu tinha sonhado que a OAB conseguiu alterar a estrutura dos tribunais. Por tal golpe de misericórdia, um quinto seria, doravante, reservado para juízes, e o restante das vagas seria preenchida apenas por advogados, obedecidos critérios alternados de bajulação e enriquecimento. 

Aqueles capítulos de sonhos provocaram em mim uma sensação crescente de asfixia. Graças a Deus, o celular tocou: __ “Filim, faz uma semana que ocê num liga prá mamãe. Num vai mi dizê cocê está com depressão de novo?”. Eu pensei: __ Minha mãe não sabe das coisas. Ela é tão feliz, coitada! Nem azia ela nunca teve. É porque ela nunca precisou de advogados nem de tribunais.