sexta-feira, 7 de novembro de 2014

AVENTURA XIII - INTERVALO ENTRE O QUARTO E O ÚLTIMO ROUND - A LUTA PRECISA CONTINUAR


  
“É danoso, o sonho. E é inútil sonhar; é preciso suportar a chatice do serviço. Mas acontece que a vida despontará em outra dimensão, e o grandioso se estenderá através da ninharia” – Maiakóvski
“Os erros de um sábio fazem a tua regra, não as perfeições de um idiota” – William Blake


Outro dia mamãe disse, sem cerimônia, que eu sou um suicida nato. Ela acredita que eu não seja mais capaz de administrar minha revolta com o mundo em que escolhi viver. Ela não consegue compreender porque não fujo das cenas de violência e injustiça, logo eu, segundo ela, que sou um sujeito viciado em justiça e paz. Pior ainda, ela me disse que eu não pareço seu filho, e, irritada, me perguntou o nome daquele exame capaz de afastar toda dúvida sobre a paternidade. Eu disse: __ É DNA, mamãe!

Depois de um longo silêncio, com toda sua sabedoria, mamãe me disse que não vai mais ler meus textos, porque não gosta deles, já que contém maledicências, que a fazem se sentir mal. Não parou aí: com olhos em riste, ela bronqueou: __ Você deveria se conformar, meu filho! Desde que o mundo é mundo, há canibalismo na humanidade! Você não tem como competir, porque seus sonhos são inofensivos!

Eu gosto muito que mamãe fique em casa. Ela não precisa correr riscos porque nem na padaria eu a deixo ir para comprar pão e leite. Ela apenas se deixa hipnotizar pelos enredos novelescos que a televisão crava em seu cérebro frágil. Nas horas vagas – que são tantas, já que ela está aposentada –, com jeito de borboleta encouraçada, ela faz poesia açucarada, com pitadas de sal e ternura, capazes de amolecer o coração já amolecido de gente apressada e sensível, que a louva como um louva-a-deus guarnecido com colete à prova de inseticida.

Mamãe precisa entender que minha escrita é profunda e impiedosamente introvertida. Sou o sujeito mais inconformado que existe dentro de mim. Não falo mal de pessoas, nem há em mim nenhum heroísmo. Minha crítica é endereçada aos defeitos do sistema. A ingenuidade e a desobediência tatuam indelevelmente minha natureza. Cada palavra minha tem vontade de me convencer de que a lua é linda apesar do fétido odor de queijo velho que ela exala. A única verdade séria que me habita é a de que não sou um conformista. Nunca quis a alta-estima da cúpula nem almejo a cópula com seus perfumes exagerados. Por isso, recuso vassalagem, nem me deixo coagir pelas opiniões de massa. Além do mais, nunca desconheci que o establishment gosta bem mais dos conformistas do que dos inconformados. Enfim, não estou nem aí para o paraíso, que jamais será integralmente coletivo, porque a vocação seletiva é inerente tanto ao ser humano quanto à divindade.

Ôh, mamãe, entenda: a leniência, na maioria das vezes, é desastrosa e trágica. Lembre-se de Albert Speer, que foi um dos conselheiros de Hitler. Em suas memórias, ele diz que as pessoas próximas do ditador formavam um círculo de absoluta conformidade. Não havia espaço para divergências. Em tal atmosfera, até as decisões mais bárbaras do Fuhrer contavam com aprovação e, sob o status da razoabilidade, a ilusão de unanimidade imperava. Nesse contexto, a possibilidade de outras ideias surgirem, boas ou más, era natimorta.

O câncer é resultado da indiferença e da negligência!

Mamãezinha, eu imploro, aceite-me assim mesmo, ainda que eu não consiga voltar as costas à realidade. Até o último suspiro eu vou lutar para que a sociedade não seja indiferente, para que alguns juízes não sejam egoístas, para que tantos advogados sejam éticos. Querer um mundo melhor não pode ser visto como uma ofensa minha a ninguém. Pobre coitado de mim!

Eu acabei me lembrando de que antes de comprar meu ingresso para essa luta, por conta de todo aquele estresse, na madrugada anterior ao evento, veio em mim uma overdose de pesadelos. Eu sonhei que o sistema entrou no meu intestino, que passou a ser seu hospedeiro. Quando fui escovar os dentes, vi-me em um espelho metafísico, que não obedece à lei da ótica (ele reproduz a imagem do ser como é visto pela pessoa que está na sua frente): eu tinha acabado de ser convertido no mais cordato dos zumbis. Atrás de mim, mamãe libertou um sorriso feliz e orgulhoso.

No segundo pesadelo, o árbitro quis suspender a luta. Enquanto o sangue escorria copiosamente no rosto machucado do lutador Anaclínio Conceição, o árbitro se mostrava profundamente preocupado com um pequeno hematoma que nascia, que nem espinho, no dedão do pé esquerdo do general campeão.

Veio em mim um desesperado e urgente pedido para os céus: __ Deus, mande esse maluco começar logo o quinto round. Essa luta não pode ser interrompida; ela já dura mais de 50 anos e precisa chegar até o fim. Eu paguei o ingresso da esperança de que o milagre da justiça seja feito hoje, sem mais delongas!









quinta-feira, 16 de outubro de 2014

AVENTURA XIII - QUARTO ROUND - EXECUÇÃO: ONDE ESTÁ O MEU DINHEIRO?

“Você nunca realmente perde até parar de tentar” Mike Ditka (jogador e técnico de futebol americano)
“Ninguém jamais se afogou no seu próprio suor” – Ann Landers


A pancadaria está comendo solta! Depois que a sentença condenou o general a pagar, ao Anaclínio, diferenças salariais, férias e repouso semanal remunerado, a dignidade do trabalhador virou saco de pancadas! Eu sinto que paira no ar um “ai” sangrando, azedo, cansado de sofrer uma dor silenciosa, que arde com a indiferença daqueles que se satisfazem apenas com o gesto de assistir ao espetáculo.

A verdade é que o juiz produziu uma sentença perneta, de tão abstrata. Ele reconheceu que as férias e as diferenças salariais deveriam ser “atribuídas” ao Anaclínio. Todavia, deixou de traçar qualquer parâmetro para a futura quantificação destas parcelas – quanto percentualmente se pagou do salário mínimo? –, o que inviabilizou a apuração, criando um terreno fértil para infindáveis discussões. Quando isso acontece – a falta de zelo do juiz! –, surgem números mirabolantes, porque a matemática se sujeita às contas que só a malícia dos advogados é capaz de produzir.

Para escurecer ainda mais a tela, que já não estava bonita, o juiz mandou que o simples trabalhador rural voltasse a trabalhar na fazenda – o nome que o juiz deu a isso é reintegração –, já que, segundo ele, não haveria incompatibilidade para que os lutadores litigantes coexistissem. Alguém seria capaz de imaginar cena tão romântica como esta?  Depois de levar um general no pau, o trabalhador retorna ao emprego, sendo recebido com um abraço tão carinhoso, que escancara suas vísceras como ácido sulfúrico dançando na pele ao som musical do Rei Roberto Carlos cantando “eu voltei, agora prá ficar, porque aqui, aqui é meu lugar”. Francamente, é algo como recomendar à ovelha que vá até a casa do lobo mau depois da abstinência carnívora imposta pela Semana Santa.

Se o Poder Judiciário pudesse ser representado por algum personagem do folclore brasileiro, com certeza, quem definiria melhor sua imagem seria o Saci Pererê. Para quem o desconhece, o Saci é uma figura de uma perna só, que anda com um cachimbo pendurado na boca, usa uma carapuça vermelha e adora aprontar travessuras. A figura adora sacanear toda gente. Nunca lhe falta a molecagem de se divertir com a preocupação das pessoas quando ele some com seus pertences.

Ora, todos sabem que um sujeito, que tem uma perna só, terá sua locomoção e agilidade reduzidas. Além do mais, existe atitude mais fora de moda do que fumar cachimbo?

O juiz, em 23 de maio de 1975, ordenou que o oficial de justiça fosse na fazenda do general dizer que ele tinha de pagar o que devia ao Anaclínio. Isso só ocorreu em 23 de setembro de 1975. O pior é que o general não foi encontrado na fazenda. O documento que continha a ordem do juiz foi devolvido no cartório civil. O processo só voltou a andar em 14 de agosto de 2012. Por quase 37 anos nem o advogado, nem o juiz, nem ninguém, fizeram qualquer coisa para que a ação voltasse a andar. Haja incompetência!

O Poder Judiciário precisa ter honra! A melhor maneira de extrair o significado prático desta palavrinha, no mundo judiciário, é cuidar, a sentença, de sair do papel, fazendo-se respeitar. Ora, a atividade do juiz não se pode esgotar no simples ato de condenar. A condenação precisa ter vida real, que só existirá quando o comando contido na sentença for cumprido. Que pague quem deve! A ineficácia da execução personifica, na maioria das vezes, o descompromisso funcional do sujeito que julga. Não pode haver um abismo entre o direito reconhecido na sentença e o dinheiro que deve representá-lo. A indiferença perante tal distanciamento representa um escárnio ao valor justiça. O juiz precisa tirar o traseiro da poltrona e desenhar, com garra e perseverança, um enredo mais bonito para sua decisão, que não pode ficar parada, à-toa, sem ser concretizada. Ele precisa ser solidário à angústia do credor. Juiz que é juiz de verdade se preocupa com os desígnios da sentença. Se for preciso, entre no ringue, Excelência, e soque, soque, soque até a sentença pulsar. Não poupe energia. Para a virtude de fazer valer a sentença cabe uma overdose de entusiasmo.  

O general morreu em 1996, quando tinha 95 anos de idade, sem pagar nem um tostão. O Anaclínio continou vivinho procurando seu dinheiro por mais de 50 anos. As pernas estão descalcificadas e bambas, tanto quanto a fé na justiça. Vai ver que foi o Saci Pererê, de toga, disfarçado de Pôncio Pilatos, que escondeu o dinheiro do pobre trabalhador debaixo do tapete. 

Enquanto isso, no ringue, o público histérico vai crescendo em consciência e maturidade e, por isso, começa a zombar, bater e cuspir sem modos... Em quem?                                                         

















quinta-feira, 2 de outubro de 2014

AVENTURA XIII - INTERVALO ENTRE O TERCEIRO E O QUARTO ROUND - AINDA SE FAZEM JUÍZES COMO ANTIGAMENTE?

“... O dar-vos quanto tenho e quanto posso, Que quanto mais vos pago, mais vos devo”. - Camões

Antigamente havia festanças em Roma. O Coliseu era o endereço de relevo. Os gladiadores refestelavam a plebe rasgando-se uns aos outros. Não me faz mal refletir sobre essa roda-viva histórica. Eu acabo percebendo que ainda sou real e tenho rumo!
Olho para o ringue e vejo o sorriso repulsivo do general que se contrapõe ao rosto inchado do rival que retribui a dor com trilhas de sangue e brava resistência. O rurícola ostenta pernas que são como rochedos hercúleos que invejam os troncos das árvores da fazenda em que trabalhou. O público regozijado, ainda assim, repudia o reacionário militar fazendeiro, enquanto toma conta de mim um remorso deseducado que radicaliza e repreende impiedosamente: __ O que o faz vir repousar neste recanto judiciário? Teria sido muito melhor que ficasse recluso, em casa, lendo Gustave Flaubert, ao invés de reverenciar esta luta absurda que tem tudo para acabar mal. Você é relaxado como todos os outros, vencido pela imposição do menor esforço, em constante fuga da realidade!
Mamãe rivaliza a voz da consciência. Ela sempre retruca e diz que sou o último romântico! Ela só se preocupa com os erres que meu raciocínio vem relampejando, como se fosse metralhadora (ela diz que eu tenho um "ticket" nervoso. Coitada! Como a maioria dos operadores do direito, ela tem muitas dificuldades com o vernáculo). Acho que a culpa é do estresse que a frustração ruge. Por causa disso, ronca em mim palavras como revolta, realidade, radicalismo, ressentimento, rebeldia, reminiscência... embora eu ainda seja jovem, parece que a maioria dos juízes, antigamente, era bem mais devota às suas profissões (bom, eu prefiro acreditar que era assim!). Talvez seja por isso que eles se remetiam ao raciocínio de que a magistratura era um sacerdócio. No entanto, os tempos são outros, lotados de riquezas sem reza.
Eu creio que um advogado, quando resolve ceder à obsessão de se preparar para o concurso público da magistratura, precisa programar-se rigorosamente também para viver uma vida dura, que traga consigo o prazer do engrandecedor sofrimento profissional que a busca da justiça verdadeira precisa rumorejar. É preciso relembrar a autoconsciência do ofício, que não pode ser relevada, porque a nobre incumbência de decidir sobre a vida, a liberdade e o patrimônio dos outros, não deve, nunca, produzir facilidades. O caminho escolhido deve significar a travessia da paixão reverenciadora da justiça a ser atingida sob todos os esforços possíveis. A consciência de que a profissão exige uma entrega sem limites, com ingresso em um espaço sem retorno, tem representado, infelizmente, uma ideia rombuda e nauseabunda. O ensimesmar-se – tão comum aos magistrados do passado –, tem sido um pensamento tão retrógrado quanto o de que a masturbação enlouquece.
Ôh Pai do Céu, como tiveram a coragem, de ser juízes, um enorme contingente de gente, que só quer se servir da magistratura, transformando-a em um banquete sem fim, rejeitado o ideal platônico de servir a ela ao invés de servir-se dela?
O valor da justiça está descendo veloz uma ribanceira sem fim enquanto a riqueza passou a ser reverenciada e medida pelo volume da indiferença do riso e da impunidade. O hedonismo voltou como um furacão e trouxe consigo, com jeito de dogma, o rumor de que sexo é saúde (advirto: o transtorno da hiperssexualidade é uma patologia) e de que não existe justiça sem gozo. Enquanto isso, o raivoso CNJ só quer saber de recordes estatísticos e ralha quando os juízes não alcançam os números planejados.  
Será que tem reparação?
A relapsa neurose da felicidade conspira contra as virtudes públicas.  O egocentrismo e o egoísmo tem maior quilate do que o valor justiça, que vem sendo rejeitado sem dó em proveito da obrigação de ser feliz. O que se tem hoje em dia é pouco para quitar a dívida de realizar a melhor justiça possível. Os fatos relatam que quanto menos se paga, menos se deve. Nesse mundo em ruína que nem o Coliseo, se o Aladim e o gênio da lâmpada mágica aparecessem aqui, eu pediria que eles fizessem a justiça ser uma compulsão mais forte do que o consumismo e do que o sexo.

Mamãe, desculpe-me se às vezes eu lhe falto com o respeito e acabo parecendo um sujeito rescaldado, resmungão, respondão e  ressabiado. Há tantas mensagens subliminares que tatuam o inconsciente e o impregnam com regras inconfessáveis que a resistência em tempo de guerra fica naturalmente minada. Em resumo, meu maior medo é ser incoerente! Ivagina se fosse diferente? Opa, soou o gongo para o quarto round!









quarta-feira, 24 de setembro de 2014

AVENTURA XIII - TERCEIRO ROUND - A SENTENÇA

“Não pretendo ficar me torturando, nem a ti. Por que insistes em perguntar? Não hás de me convencer a falar. Não, não falarei. Esbraveja à vontade. Que coisa terrível é saber a verdade, quando a verdade não traz alívio. Tu me forçaste a falar. Eu não queria” – Tirésias ao ser pressionado por Édipo a falar.

O Anaclínio processou o General por intermédio de um advogado a quem coube redigir a petição inicial, que é a peça que faz nascer a ação judicial. Quando a gente chama um advogado para cuidar da demanda, qualquer um de nós imagina que ele seja capaz de dar conta do recado. Para que o direito da parte seja alcançado, é preciso que o causídico tenha a capacidade de investigar e identificar os fatos importantes para  respaldar os pedidos que vão ser feitos.
Eu percebi que o profissional contratado pelo desafiante omitiu fatos essenciais para que o juiz compreendesse bem as circunstâncias do conflito entre o trabalhador rural e o general e pudesse decidir a lide com clareza e justiça.
O advogado disse pouco ao narrar que o trabalhador “sempre recebeu pagamento insignificante, que mal dava para amenizar o seu deplorável estado de necessidade” e, pior, deixou de dizer que o Anaclínio recebia parte de seu salário mensal através de mercadorias adquiridas no armazém do patrão. Ao noticiar, por exemplo, que o ex-empregado, antes do ano de 1960, “recebia salário inferior a mil cruzeiros mensais”, o advogado mostrou-se incapaz de colher, escolher e narrar os fatos vitais para que as funções processuais fossem bem absorvidas e saudavelmente desenvolvidas. Aliás, o processo só é verdadeiramente saudável quando, através dele, o litigante recebe exatamente o bem da vida a que tem direito, nem mais, nem menos.
Eu sinto que quando a coisa começa errada e não é corrigida logo no início, por displicência do juiz – eu tenho a impressão de que ele não lê o processo antes da audiência –, o erro toma forma, propaga-se, avoluma-se, cresce que nem bolo de casamento, incha, engordura-se, fica forte, e acaba tomando jeito de sujeito ruim que fede na política sem dó da gente.
Ora, teria sido ótimo se o advogado fosse mais objetivo, dizendo, por exemplo, que o trabalhador auferiu quantia equivalente a 60% do salário mínimo vigente na época em que o pagamento era devido. Se tivesse mais zelo e técnica, o juiz, na sentença, poderia ter sido mais preciso, ao invés de gerar uma condenação tão abstrata e incapaz de produzir segurança jurídica, como foi a de mandar pagar diferenças salariais sem indicar os parâmetros. Ou poderia ter sido menos insensível. Ora, mandar que a ovelha voltasse a trabalhar para o lobo – o juiz determinou que o Anaclínio voltasse a trabalhar na fazenda do general – é a piada mais sem graça que já ouvi na vida! Lembra Auschwitz!
Eu aprendi que a sentença é a última e mais importante decisão de um processo, tanto quanto o intestino grosso é a parte final do trato digestivo.
A petição inicial tem a nobre missão de selecionar e decompor os fatos, filtrando as situações especiais para que elas possam produzir efeitos jurídicos. A petição inicial me faz lembrar da flora intestinal que, apesar de conter muitas bactérias, produz vitaminas ou, ao menos, ela deveria funcionar como o colo do intestino grosso, que transforma os resíduos do intestino delgado numa forma mais sólida, que o corpo excreta como fezes através do reto e do ânus.
Eu também sou forçado a dizer a verdade, que não me traz nenhum alívio: tanto uma parte significativa da sentença quanto o intestino grosso existem para secretar fezes. A sentença é o ânus da petição inicial. Ela precisa ter função purificadora e higiênica, vocacionada para pacificar os ânimos dos litigantes.

Em síntese, quando a petição inicial não presta, ou contém deficiências graves, que não foram reparadas no momento oportuno, o processo acaba demorando demais da conta, dá uma enorme dor de barriga, causa muita angústia e produz um doloroso arremedo de justiça capenga e uma catinga fedorenta demais que nem ouso descrever!





quinta-feira, 11 de setembro de 2014

AVENTURA XIII - INTERVALO ENTRE O SEGUNDO E O TERCEIRO ROUND: O JEITINHO DE GANHAR DINHEIRO

"E de tudo fica um pouco. Oh abre os vidros de loção e  abafa o insuportável mau cheiro da memória" - Carlos Drummond de Andrade.

"É só tardiamente que temos a coragem de nosso entendimento" - Albert Camus        



            Meus Deus do céu! O segundo round foi uma pancadaria só! A maioria das pessoas torcem pelo Anaclínio, que é a parte mais fraca, mas quem vem levando vantagem é o General, que é muito mais forte. É bonito escutar as pessoas gritando, esperançosas: “David”, David”, David!”. Elas fazem alusão ao combate do pequeno David com o grandalhão Golias. Apesar de todo o estímulo, o trabalhador estava apanhando feio. O intervalo veio na hora certa, senão o desafiante ia beijar a lona.
          
         Acabei me lembrando de uma procuração que vi em um processo judicial, que começa assim: “Em nome de Deus, nomeio meu procurador...”. Caramba, em nome do Criador e do ouro cometeram-se barbáries inomináveis. Basta ver os inquisidores que, cruelmente, assassinaram tanta gente inocente, sob pretextos de praticarem bruxaria. As iniquidades não cessam...
        
        Enquanto transcorre o intervalo, como um soco no abdômen, veio em mim a lembrança do que ouvi de um advogado, certa vez, no botequim da esquina. O homem está rico! Também pudera: ele me contou que cobra honorários de 30% sobre os valores que são pagos aos seus clientes e, além disso, ainda recebe honorários de sucumbência de 20% nos inúmeros acordos que faz na justiça do trabalho.

             Outro dia ele me confessou a estratégia que utiliza para enriquecer: ele exagera nos pedidos, ou seja, acresce direitos além daqueles que seu cliente faz jus. Ele explicou: "Se o sujeito procura um advogado qualquer, vai receber X. Se me contrata, vai receber 3X. Eu exagero mesmo, porque se der revelia...". 
          
        Quando eu cheguei em casa, por causa daquela bruxaria jurídica, eu me vi emergencialmente obrigado a correr para o banheiro, com náuseas pontiagudas. Eu me apressei em consultar o google no celular para descobrir que revelia é a ausência da parte na audiência em que ela teria a possibilidade de se defender. Se isso ocorre, o efeito é o de se presumir a veracidade de todos os fatos que foram mencionados na petição inicial.
          
              Saquei: se o sujeito realmente trabalha de 7 às 18 horas, de segunda a sexta-feira, o advogado inventa que ele presta serviços de 7 horas às 21 horas porque, se a empresa não for na audiência, o juiz vai condená-la a pagar seis horas extras diárias ao invés das três a que ele realmente teria direito (eu custo a acreditar que possam existir juízes tão ingênuos e indiferentes assim). E se a empresa for e se defender, o insucesso da aposta do advogado não lhe trará outras consequências. Ele vai renovar impunemente o jogo no dia seguinte. 
        
            Eu só sei que esse tal de honorários de sucumbência também é uma coisa meio estranha. Se o João tem dez mil para receber e o devedor não lhe paga espontaneamente, ele acaba sendo obrigado a contratar um advogado para receber na justiça o seu crédito. Se o juiz dá razão ao autor da ação, isso significa que ele deve receber exatamente os dez mil reais a que tem direito. Se tive de pagar ao advogado dois mil reais de honorários, ele vai receber oito mil reais, ao invés dos dez mil que lhe são devidos. Para que ele não sofra diminuição patrimonial, o justo é que a parte contrária seja responsabilizada pelo pagamento dos dois mil reais ao advogado contratado pelo autor da ação: está aí a justificativa para a existência dos tais honorários de sucumbência.
          
          Só que não é assim que acontece: no frigir dos ovos, quem fica com estes honorários é o advogado. Acaba que, ao final, usada a fórmula do advogado do botequim, o trabalhador vai receber menos do que aquele que contratou. Dos dez mil reais, o imposto de renda abocanha 27,5% (R$2.750,00). Dos R$7.250,00 que sobram, retirem-se 30% sobre dez mil reais para o advogado. Sobram R$4.250,00. O advogado vai receber ainda mais 20% de sucumbência (R$2.000,00). Ao final, dos dez mil reais que o juiz mandou pagar, o trabalhador ficará com R$4.250,00 e o advogado com R$5.000,00.  Vê se pode?  
        
        Eu acho que a profissão mais bem paga do mundo é a dos advogados. Afinal de contas, no contexto acima, receber 50% do valor devido ao autor da ação é algo bastante inusitado, não é?
       
        Não é só o Anaclínio que está levando uma surra no ringue. O trabalhador que contrata advogados espertalhões acaba ganhando mais do que merece. O jeitinho brasileiro no mundo jurídico é um jeitão impiedoso, de dar inveja aos melhores arquitetos do crime. No embate entre o pedido e a defesa, a virtude da honestidade leva uma surra de dar dó! O pior é que esses excessos acabam sugando para a velhacaria muitos adeptos, com a força de um vácuo. Na voz do vento, a mensagem da vilania se espraia. 

        A verdade é que essa gente só será realmente indispensável à administração da justiça quando almejar exatamente o bem de vida a que seus contratantes fazem jus. É sem remédio a ganância advocatícia?
          
          Opa, soou o gongo! Daqui a pouco vai começar o terceiro round.  












quinta-feira, 4 de setembro de 2014

AVENTURA XIII – SEGUNDO ROUND - O GENERAL RESPONDE

“Miséria. Baixeza do homem até submeter-se aos animais, até os adorar”. Pensamentos. Blaise Pascal

“Meus olhos são pequenos para ver o general com seu capote cinza escolhendo no mapa uma cidade que amanhã será pó e pus no arame” – Carlos Drummond de Andrade

“Fardado, Você também é explorado – aqui!, Por que você não abaixa essa arma, O meu direito é seu dever, por que você não usa essa farda, Pra servir e pra proteger (...) Ponha-se no meu lugar, ponha-se no seu lugar, Ponha-se no meu lugar, no meu lugar”- Titãs.


Eu sempre disse que é preferível uma democracia falha do que uma ditadura. Saiu até nos jornais. Literalmente! Eu repito: uma democracia falha é infinitamente melhor do que a ditadura e a própria democracia, que nunca deve funcionar plenamente. Por isso eu tenho certeza de que os tempos de hoje são muito piores do que os de antigamente.

       Hoje em dia acabaram com os atos institucionais. Morro de saudades do AI-5 . Na atualidade, a sociedade está hipnotizada por aiphones, aipédis, aipódis! Os meninos nem sabem mais conversar! É só teclar o dia inteiro. Acaba que, por falta de homens, as meninas estão até se experimentando, tenente! A verdade é que os pais perderam o controle. Basta ver que as escolas esculhambam com a educação dos filhos dos nossos filhos. Até excluíram das grades curriculares a disciplina de Moral e Cívica. É o caos! (O Tenente meneia a cabeça em sinal de solidariedade).

Nem se tem mais, hoje em dia, a liberdade de prender e torturar o resto de comunistas que andam por aí. Ninguém mais tem respeito por nós, os militares, que sempre garantimos a segurança da nação contra os ambiciosos projetos de dominação bolcheviques.
__ Sim, Senhor! Disse o Tenente. __ Os tempos mudaram, General! Ninguém dá mais valor aos heróis de verdade!  

Você veja só que situação: em 1960 leu estava superpreocupado como nunca com o nosso Brasil, este impávido colosso, enquanto o Presidente João Goulart, meu compadre, abria as portas do gabinete presidencial para um bando de sindicalistas e para a gentalha do partido comunista. Ora, quem fala em reforma agrária e distribuição de riquezas não pode ser levada a sério. Aquela gente queria mesmo é acabar  com o nosso Brasil. __ Sim, Senhor. Disse o Tenente! Queria sim! E se não fosse pelo Senhor, eles teriam conseguido!

Francamente, o Popeye (General Mourão Filho) fez muito bem em mandar as tropas para o Rio de Janeiro! E depois dele o efeito veio em cascata. Você  acredita que o João Goulart , em 31 de março de 1964, ainda teve a audácia de me ligar, coitado, para pedir meu apoio contra a revolução? Sabe o que eu disse? __ Compadre, eu te apoio, sim, mas você precisa por todo esse bando de comunistas, urgentemente, para fora do seu governo! Essa gente é o lixo do detrito! Jogue-os no vaso!

Tenente, como é que um Presidente da República pode ter gratidão e honestidade ideológica? Sabe o que o Jango me respondeu?  __ Não posso trair meus camaradas! Eu cheguei ao governo por conta do apoio dos sindicalistas e comunistas. Não vou abandoná-los agora. Aí eu arrematei: __ Se é assim, compadre, não podemos fazer mais nada! E o Jango foi que nem galinha assustada voando para o Uruguai – terra da canalhagem vermelha – enquanto nossos zelosos militares chegavam na Guanabara armados até os dentes (os olhos do interlocutor brilhavam que nem constelação).

Pois é, Tenente, entre 2014 e 1960, eu fico com os velhos e bons tempos. Naquela época havia a saudosa escuderia Le Cocq, que fazia um exemplar serviço de limpeza, pois que pegava a bandidagem e lhes dava um tratamento condigno: era pau-de-arara a torto e a direito e ainda se produziam uns presuntos por aí (ele libertou um sorriso de favelado quando ganha a primeira bola de futebol).

Pois eu morri em 1976, aos 95 anos, tenente! Uma insuficiência respiratória infalível! Mas enquanto vivi, eu sempre zelei pela saúde deste nosso Brasil. Ah, se zelei! Com aquele um milhão e duzentos mil dólares que eu recebi do governo dos Estados Unidos para apoiar a deposição do Presidente da República, eu comprei um bocado de fazendas para ajudar o Brasil a se enriquecer. Eu amava aquelas fazendas, menos uma, lá do interior do Estado do Espírito Santo, que tinha plantação de cacau. Você acredita que um trabalhador de uma das minhas fazendas – que eu devia ter sumido com ele –, me levou na Justiça? Quando isso aconteceu eu era Ministro da Guerra, e fiquei tão revoltado com tanta ousadia, que eu jurei que aquele caboclo nunca ia ver a cor do dinheiro. Você acredita que o oficial de justiça chegou a ir lá na fazenda e me disse: __ General, o Senhor assina este mandado aqui, porque o Senhor está sendo citado! Eu lhe disse: __ Não assino não! Só assino por ordem de meu superior, que é o Ministro do Exército! Ele se virou e foi embora. Quando ele virou as costas, eu cheguei a engatilhar o revólver, tenente...

Veja só onde chegamos? Hoje, minha honra e história estão sendo manchadas, tenente! É um absurdo: uma advogada, com mais culhões do que muitos de seus colegas, ressuscitou a causa, e a Justiça do Trabalho obrigou meus herdeiros e as pessoas que compraram a fazenda da minha viúva a pagar ao Anaclínio – era este o nome da peste! – mais de dez mil reais?! Isso é uma vergonha! Não é pelo dinheiro, você sabe disso, Tenente! Dez mil é merreca prá mim! A questão é moral! Como é que pode um Marechal do glorioso Exército Brasileiro ser obrigado a pagar alguma coisa para um trabalhador rural? É o cúmulo da insubordinação! Se eu ainda estivesse no poder ia fazer mais uma revolução: __ Prenda o juiz e corte-lhe a cabeça. O mundo está mesmo perdido, Tenente. Estão acabando com a impunidade! O Tenente balançava a cabeça em sinal de aprovação.

Ainda bem que eu morri, tenente, porque eu não conseguiria viver no mundo atual. As coisas estão completamente fora de lugar!    
O tenente diz: __ Apesar de tudo, o Senhor ainda é um herói nacional, mesmo que esteja morto! Aliás, se o  senhor me permite, eu acho mesmo é que o senhor devia ser beatificado, porque fez o milagre de impedir que os comunistas tomassem conta do Brasil. Se não fosse pelo senhor, a bandeira nacional estaria pintada de vermelho! Depois, o Senhor tem um currículo invejável: foi até deputado federal e...

          O telefone aborta os elogios: __ Alô! Sim, só um instante, vou ver se ele está? __ General, é para o Senhor. É DEUS! __  Tenente, diga a ELE que eu não posso atender agora, que estou muito ocupado, que é para ELE ligar amanhã! O General, irritado, deixou o Tenente pensando sozinho e retornou ao mais profundo subterrâneo rumo à fornalha!  










quinta-feira, 28 de agosto de 2014

AVENTURA XIII – INTERVALO ENTRE O PRIMEIRO E SEGUNDO ROUND - QUANDO A PETIÇÃO INICIAL NOCAUTEIA O DIREITO DA PARTE

                                 "O que me desgostou da profissão de advogado é o fato de quererem encher meu cérebro com uma profusão de coisas inúteis. Ao fato é minha divisa"- Voltaire.


                                   Enquanto o árbitro propagandeia as virtudes dos lutadores e as popozudas mostram uma musculatura esquisita, de tão masculinizada e tatuada, eu aproveito o tempo para fazer algumas reflexões.

                                   Nas minhas visitas às audiências e aos autos de inúmeros processos judiciais, eu aprendi que o juiz não pode agir sem que a parte o provoque a prestar jurisdição através de um advogado. Isso significa que, em grande medida, o sucesso ou insucesso de uma ação judicial – leia-se: a condenação ou absolvição da outra parte –, depende da extensão dos conhecimentos técnicos e do dispêndio de energia e interesse, que o profissional venha a ter pela causa. Por isso, é indispensável que a parte não poupe esforços na seleção e escolha do advogado que vai ficar responsável, do início ao fim, pelo acompanhamento da ação.

                                     Se eu fosse um advogado, ao provocar o juiz através de uma petição inicial – é este o nome da peça que inicia um processo -, eu teria muito cuidado em narrar os fatos para convencer o julgador de que a razão estava do lado do meu cliente.

                                   Eu faria com que a minha petição inicial fosse composta por elementos fáticos que permitissem ao juiz decidir o caso como se ela fosse a única peça existente nos autos do processo. Do seu teor – que deve ter sempre uma medida certa –,  o juiz poderia ser capaz de extrair todos os fatos suficientes para que pudesse decidir. Jamais seria uma inicial gordurosa, repleta de fatos insignificantes e descrições sem valor. Nem seria esquelética e raquítica, com ausência da descrição sucinta dos fatos que poderiam produzir os efeitos almejados por mim. Eu penso que, se a inicial tivesse esse grau  qualitativo de autonomia – ser suficiente, por si só, para a formação da decisão do juiz –, as chances de sucesso seriam bem maiores. Está aí a definição ideal desta peça que, já disseram, deve funcionar como um projeto de sentença. Aliás, se é correta a ideia de que a inicial é o alicerce da última decisão do juiz no processo, talvez esteja aí o motivo de muitas sentenças parecerem peças de arte surreal, contaminadas pelos defeitos da peça inicial, que não foram corrigidos no tempo certo, pois que de seu conteúdo não se chega a um convencimento de que, de fato, o pedido mereceu ser acolhido ou rejeitado pelo juiz. A decisão, ao invés de pacificar, acaba piorando o estado de angústia da parte.

                                   Eu vejo que o advogado do Anaclínio, na petição inicial, passou longe desta minha perspectiva otimizada de construção da petição inicial. Ele se limitou a dizer, simplesmente, que o trabalhador fazia horas extras e recebia quantia inferior ao salário mínimo. Com tanta exiguidade fática,  o juiz, na hora de decidir,  deve ter ficado perplexo. Ora, como pedir o pagamento de horas extras se sequer o horário em que os trabalhos eram iniciados e terminados tenham sido expostos? Como pedir diferenças salariais quando nada se diz sobre o salário que era devido e nenhuma informação se deu sobre o valor que era pago? Para que a petição inicial fosse apropriada teria sido necessário dizer que o Anaclínio começou a trabalhar, por exemplo, às sete horas e terminava o labor às 22 horas, de segunda-feira aos sábados, com uma hora de intervalo para almoço e, ainda, que ele recebia apenas 60% do salário mínimo.

                                   O problema é que o universo judiciário está composto por advogados e  “devogados”: aqueles são profissionais que zelam pelo bom nome da advocacia, pois estudam as leis e a jurisprudência e refletem eticamente sobre o direito dos clientes, cuidando de redigir petições iniciais aptas; os outros, são pessoas que arrebentam com os limites éticos que devem nortear suas ações e pedem certas coisas, carecas de saber, que seus clientes, não tem os direitos almejados, transformando os processos em jogos de sorte e azar. Eu sinto que quando a petição inicial nasce ambígua, abstrata, insegura, desmazelada, tudo isso se reflete no espírito de quem vai decidir, pois que, ao invés de facilitar, ela acaba por exigir um esforço enorme de quem a lê e, normalmente, não tem lá muita disposição para esvaziar o tanque de combustível interpretativo de fatos que sequer foram mencionados. Ora, não se pode exigir dos juízes exercícios de adivinhação. 

                                   Na lógica fanghorgiana, se a petição inicial é frágil faticamente, por coerência, a decisão que se seguirá tem tudo para padecer de idêntico vício: sem a descrição ideal dos fatos que respaldam os pedidos, o desfecho será fatídico para todos, pois que o juiz terá produzido, sem culpa, um arremedo de justiça. Em síntese: se a inicial é ruim, não se poderá esperar grande coisa da sentença, pois o juiz não tem o dever de produzir milagres.

                                   No final das contas, acaba sendo muito mais fácil aos “devogados” convencer o contratante de que perderam a causa por culpa do Poder Judiciário ao invés de reconhecerem os próprios erros. Vale dizer, a petição inicial, numa luta judicial, pode massacrar o direito da parte.





segunda-feira, 18 de agosto de 2014

AVENTURA XIII – PRIMEIRO ROUND: A PETIÇÃO INICIAL


“É perigoso dizer ao povo que as leis não são justas, pois ele só obedece a elas porque acredita que são justas. É por isso que é preciso dizer-lhe ao mesmo tempo que é necessário obedecer a elas porque são leis, como é preciso obedecer aos superiores não por serem justos, mas por serem superiores. Assim qualquer sedição fica prevenida, se se puder fazer entender isso e que (essa é) propriamente a definição de justiça”. Blaise Pascal

Eu ouvi dizer que o povo das cidades gosta da luz da lua porque tira dela um pouco de poesia. Pois eu não imagino como isso seja possível. Não que eu seja um homem insensível. Mal mal eu tive o abecê, porque minha vida era só trabalhar e trabalhar e trabalhar, mas, ainda que eu quisesse ver mais luz do que de fato a lua enviava, a sombra dos jagunços causava penumbra na minha vida.

A fazenda foi vendida de porteira fechada. O general pagou um preço que também comprava a miudeza da minha vida distribuída em pedaços por mais de 100 alqueires de cacau dentro de 200 alqueires de terra.

Eu comecei a trabalhar com oito anos, mas desde os treze eu lido com cacau. A labuta começava quando o sol surgia. Sei tudo sobre plantio, manutenção, colheita e beneficiamento de lavoura cacaueira, que precisa de muito sol e muita chuva para florescer, que nem a gente mesmo. Sem cacau não tem chocolate, que dá muita energia para o homem fazer a família crescer.  

Eu acho que a amêndoa do cacau deu muito dinheiro ao general e ao coronel, que só chegavam na fazenda de avião. Eu carregava a mala deles para fazer um agrado, mas aquela gente nunca deu nem meio litro de leite para ajudar minhas crianças.

Naquele tempo nem rádio tinha. Chegava à noite, era tudo breu. A gente fazia filho na escuridão. Se alguém ficava doente, o remédio era mais trabalho. 

Eu ficava encantado com a farda dos homens. Já tive sonho de calçar botas. A gente só andava descalço. A sola do pé ficava tão grossa e dura que, se pisasse em cobra, a peçonhenta morria na hora.

Não havia fome na fazenda. A gente aprendia rápido a sobreviver. A comida era feita de carne de caça, capivara gorda e paca. A gente apanhava o bicho, que era banha pura, lascava sal, cozinhava no feijão, rasgava aquilo e caia no mato para trabalhar. Chegava no final de semana, eu botava a roupa em pé. De tão suja, ela ficava empinadinha, que nem soldado.

Dia de pagamento devia ser dia de alegria. Não era. O coronel embuchava o dinheirinho e enfiava no cano do revólver, que punha em cima da mesa. Ele punha um sorriso esverdeado no canto da boca e ficava ali, esperando quem tivesse coragem para ir lá receber. A maioria dos trabalhadores via só um pouquinho a cor do dinheiro e fazia de conta que a vida valia a pena.

Toda fazenda tinha armazém, uma espécie de barracão, com mercadoria espalhada debaixo da mesa e no chão e em prateleiras. Tinha manjuba, toicinho, carne seca, arroz, feijão, requeijão. Chegava sábado, a gente ia comprar no armazém, aí eles descontavam dos nossos salários. No final do mês, eles davam o que queriam. Não tinha prestação de contas. Se não comprava o patrão punha na conta que tinha comprado e dizia: tava aí, não comprou porque não quis, por isso tem de pagar.

Eu não tinha medo de animal não! A gente era tudo selvagem mesmo! Quando o general e o coronel chegavam, eu andava na fazenda com eles. Quem anda com essas feras não sente medo de onça nada! Eu sei que o homem derrubou o presidente porque ele gritou reforma agrária no Brasil... o Getúlio Vargas foi o dono da carteira de trabalho, mas no lugar onde nós morava a lei não tinha estrada para chegar não! A lei vinha do céu, fardada, enfeitada com espada, chicote na mão e revólver na cintura.

O sujeito era brabo mesmo. Só não bateu nimim   porque Deus deve ter falado, num bate nele não... Mas uma vez o coronel bateu tanto num sujeito que eu achei até bom, porque o sujeito era muito puxa-saco. Desceu o coro porque ele tirou a caminhonete do lugar. De chicote. A pessoa não reagia, senão, naquele tempo, ela era morta na frente de todo mundo e ficava nisso mesmo.

O coronel me dispensou cara a cara... isso porque um dia ele chegou nervoso na fazenda e disse que eu tinha de por na hora os homens para roçar cacau. Eu olhei na cara dele e disse: __ O senhor não é fazendeiro ainda não. O senhor tá aprendendo ainda. Agora, o senhor, no final do mês, vai pagar a turma com o quê? O senhor é coronel lá no quartel general, aqui na roça de cacau quem manda sou eu!

O coronel me mandou sair da fazenda em oito dias. Não me deu nada além de uma Carta de Recomendação, onde disse o que todo mundo já sabia: que eu era honesto e trabalhador. Depois, ele pôs os jagunços para rondarem minha casinha de tábua e fazerem barulho na madrugada. Eles ficavam jogando lança no jardim. Minha esposa estava grávida de oito meses, e de tanto medo, cismada, ela perdeu a menina.

Eu vendi os móveis e uma cabrita que dava leite para meus filhos para dar conta da mudança. Eu me revoltei por causa disso. Catei “devogado”, e não encontrava nenhum que quisesse pegar a minha causa.  Eles diziam: “Esse homem vai jogar uma bomba em Linhares e acaba com nós tudo”.

Um dia eu disse para o coronel: “Se quiser me matar atira na cara, porque homem que é homem não mata nas costas, não!”

Gente da roça é tudo bobo... a gente não tem ganância, quando morre só leva a roupa do corpo...

Eu sei que não tendo “devogado” o juiz não pode fazer nada. Os “devogados” tinham medo do homem... meu “devogado” começou, depois tremeu, e mudou para a Guanabara. O processo ficou parado. Só voltou a andar depois que a filha da minha vizinha cresceu. Ela trabalhou de babá desde oito anos, depois virou doméstica em Vitória, e resolveu virar “devogada”, com muito sacrifício, mas o que ela quer mesmo é ser juíza do trabalho.

Eu não entendo como onze anos de trabalho foram resumidos pelo “devogado” em menos de duas folhas na tal de petição que ele fez para o juiz. Deve ser porque a vida da gente, que só faz trabalhar na roça, tem o mesmo enredo o tempo todo ou, talvez, fosse porque meu “devogado” queria simplificar tudinho para o processo andar mais rápido, quem sabe?

                                               Eu levo uma cicatriz no coração! Só Deus prá saber o que eu passei na Fazenda Piraquê! Mas hoje eu tenho minha casinha e ajudei meus filhos, e não tem uma telha que tenha sido comprada por conta do trabalho meu na fazenda do general e do coronel.