quarta-feira, 24 de setembro de 2014

AVENTURA XIII - TERCEIRO ROUND - A SENTENÇA

“Não pretendo ficar me torturando, nem a ti. Por que insistes em perguntar? Não hás de me convencer a falar. Não, não falarei. Esbraveja à vontade. Que coisa terrível é saber a verdade, quando a verdade não traz alívio. Tu me forçaste a falar. Eu não queria” – Tirésias ao ser pressionado por Édipo a falar.

O Anaclínio processou o General por intermédio de um advogado a quem coube redigir a petição inicial, que é a peça que faz nascer a ação judicial. Quando a gente chama um advogado para cuidar da demanda, qualquer um de nós imagina que ele seja capaz de dar conta do recado. Para que o direito da parte seja alcançado, é preciso que o causídico tenha a capacidade de investigar e identificar os fatos importantes para  respaldar os pedidos que vão ser feitos.
Eu percebi que o profissional contratado pelo desafiante omitiu fatos essenciais para que o juiz compreendesse bem as circunstâncias do conflito entre o trabalhador rural e o general e pudesse decidir a lide com clareza e justiça.
O advogado disse pouco ao narrar que o trabalhador “sempre recebeu pagamento insignificante, que mal dava para amenizar o seu deplorável estado de necessidade” e, pior, deixou de dizer que o Anaclínio recebia parte de seu salário mensal através de mercadorias adquiridas no armazém do patrão. Ao noticiar, por exemplo, que o ex-empregado, antes do ano de 1960, “recebia salário inferior a mil cruzeiros mensais”, o advogado mostrou-se incapaz de colher, escolher e narrar os fatos vitais para que as funções processuais fossem bem absorvidas e saudavelmente desenvolvidas. Aliás, o processo só é verdadeiramente saudável quando, através dele, o litigante recebe exatamente o bem da vida a que tem direito, nem mais, nem menos.
Eu sinto que quando a coisa começa errada e não é corrigida logo no início, por displicência do juiz – eu tenho a impressão de que ele não lê o processo antes da audiência –, o erro toma forma, propaga-se, avoluma-se, cresce que nem bolo de casamento, incha, engordura-se, fica forte, e acaba tomando jeito de sujeito ruim que fede na política sem dó da gente.
Ora, teria sido ótimo se o advogado fosse mais objetivo, dizendo, por exemplo, que o trabalhador auferiu quantia equivalente a 60% do salário mínimo vigente na época em que o pagamento era devido. Se tivesse mais zelo e técnica, o juiz, na sentença, poderia ter sido mais preciso, ao invés de gerar uma condenação tão abstrata e incapaz de produzir segurança jurídica, como foi a de mandar pagar diferenças salariais sem indicar os parâmetros. Ou poderia ter sido menos insensível. Ora, mandar que a ovelha voltasse a trabalhar para o lobo – o juiz determinou que o Anaclínio voltasse a trabalhar na fazenda do general – é a piada mais sem graça que já ouvi na vida! Lembra Auschwitz!
Eu aprendi que a sentença é a última e mais importante decisão de um processo, tanto quanto o intestino grosso é a parte final do trato digestivo.
A petição inicial tem a nobre missão de selecionar e decompor os fatos, filtrando as situações especiais para que elas possam produzir efeitos jurídicos. A petição inicial me faz lembrar da flora intestinal que, apesar de conter muitas bactérias, produz vitaminas ou, ao menos, ela deveria funcionar como o colo do intestino grosso, que transforma os resíduos do intestino delgado numa forma mais sólida, que o corpo excreta como fezes através do reto e do ânus.
Eu também sou forçado a dizer a verdade, que não me traz nenhum alívio: tanto uma parte significativa da sentença quanto o intestino grosso existem para secretar fezes. A sentença é o ânus da petição inicial. Ela precisa ter função purificadora e higiênica, vocacionada para pacificar os ânimos dos litigantes.

Em síntese, quando a petição inicial não presta, ou contém deficiências graves, que não foram reparadas no momento oportuno, o processo acaba demorando demais da conta, dá uma enorme dor de barriga, causa muita angústia e produz um doloroso arremedo de justiça capenga e uma catinga fedorenta demais que nem ouso descrever!





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