sexta-feira, 7 de novembro de 2014

AVENTURA XIII - INTERVALO ENTRE O QUARTO E O ÚLTIMO ROUND - A LUTA PRECISA CONTINUAR


  
“É danoso, o sonho. E é inútil sonhar; é preciso suportar a chatice do serviço. Mas acontece que a vida despontará em outra dimensão, e o grandioso se estenderá através da ninharia” – Maiakóvski
“Os erros de um sábio fazem a tua regra, não as perfeições de um idiota” – William Blake


Outro dia mamãe disse, sem cerimônia, que eu sou um suicida nato. Ela acredita que eu não seja mais capaz de administrar minha revolta com o mundo em que escolhi viver. Ela não consegue compreender porque não fujo das cenas de violência e injustiça, logo eu, segundo ela, que sou um sujeito viciado em justiça e paz. Pior ainda, ela me disse que eu não pareço seu filho, e, irritada, me perguntou o nome daquele exame capaz de afastar toda dúvida sobre a paternidade. Eu disse: __ É DNA, mamãe!

Depois de um longo silêncio, com toda sua sabedoria, mamãe me disse que não vai mais ler meus textos, porque não gosta deles, já que contém maledicências, que a fazem se sentir mal. Não parou aí: com olhos em riste, ela bronqueou: __ Você deveria se conformar, meu filho! Desde que o mundo é mundo, há canibalismo na humanidade! Você não tem como competir, porque seus sonhos são inofensivos!

Eu gosto muito que mamãe fique em casa. Ela não precisa correr riscos porque nem na padaria eu a deixo ir para comprar pão e leite. Ela apenas se deixa hipnotizar pelos enredos novelescos que a televisão crava em seu cérebro frágil. Nas horas vagas – que são tantas, já que ela está aposentada –, com jeito de borboleta encouraçada, ela faz poesia açucarada, com pitadas de sal e ternura, capazes de amolecer o coração já amolecido de gente apressada e sensível, que a louva como um louva-a-deus guarnecido com colete à prova de inseticida.

Mamãe precisa entender que minha escrita é profunda e impiedosamente introvertida. Sou o sujeito mais inconformado que existe dentro de mim. Não falo mal de pessoas, nem há em mim nenhum heroísmo. Minha crítica é endereçada aos defeitos do sistema. A ingenuidade e a desobediência tatuam indelevelmente minha natureza. Cada palavra minha tem vontade de me convencer de que a lua é linda apesar do fétido odor de queijo velho que ela exala. A única verdade séria que me habita é a de que não sou um conformista. Nunca quis a alta-estima da cúpula nem almejo a cópula com seus perfumes exagerados. Por isso, recuso vassalagem, nem me deixo coagir pelas opiniões de massa. Além do mais, nunca desconheci que o establishment gosta bem mais dos conformistas do que dos inconformados. Enfim, não estou nem aí para o paraíso, que jamais será integralmente coletivo, porque a vocação seletiva é inerente tanto ao ser humano quanto à divindade.

Ôh, mamãe, entenda: a leniência, na maioria das vezes, é desastrosa e trágica. Lembre-se de Albert Speer, que foi um dos conselheiros de Hitler. Em suas memórias, ele diz que as pessoas próximas do ditador formavam um círculo de absoluta conformidade. Não havia espaço para divergências. Em tal atmosfera, até as decisões mais bárbaras do Fuhrer contavam com aprovação e, sob o status da razoabilidade, a ilusão de unanimidade imperava. Nesse contexto, a possibilidade de outras ideias surgirem, boas ou más, era natimorta.

O câncer é resultado da indiferença e da negligência!

Mamãezinha, eu imploro, aceite-me assim mesmo, ainda que eu não consiga voltar as costas à realidade. Até o último suspiro eu vou lutar para que a sociedade não seja indiferente, para que alguns juízes não sejam egoístas, para que tantos advogados sejam éticos. Querer um mundo melhor não pode ser visto como uma ofensa minha a ninguém. Pobre coitado de mim!

Eu acabei me lembrando de que antes de comprar meu ingresso para essa luta, por conta de todo aquele estresse, na madrugada anterior ao evento, veio em mim uma overdose de pesadelos. Eu sonhei que o sistema entrou no meu intestino, que passou a ser seu hospedeiro. Quando fui escovar os dentes, vi-me em um espelho metafísico, que não obedece à lei da ótica (ele reproduz a imagem do ser como é visto pela pessoa que está na sua frente): eu tinha acabado de ser convertido no mais cordato dos zumbis. Atrás de mim, mamãe libertou um sorriso feliz e orgulhoso.

No segundo pesadelo, o árbitro quis suspender a luta. Enquanto o sangue escorria copiosamente no rosto machucado do lutador Anaclínio Conceição, o árbitro se mostrava profundamente preocupado com um pequeno hematoma que nascia, que nem espinho, no dedão do pé esquerdo do general campeão.

Veio em mim um desesperado e urgente pedido para os céus: __ Deus, mande esse maluco começar logo o quinto round. Essa luta não pode ser interrompida; ela já dura mais de 50 anos e precisa chegar até o fim. Eu paguei o ingresso da esperança de que o milagre da justiça seja feito hoje, sem mais delongas!









2 comentários:

  1. Oscar Wilde escrevendo sobre o bom senso disse "Nos tempos que correm a maior parte das pessoas morrem de uma espécie de bom senso servil e descobrem demasiado tarde que não existem mais do que irremediáveis erros." No meu humilde entendimento, alguem de bom senso, muitas vezes erra para que o "mundo"
    acerte.

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    1. No meu humilde entendimento, bom senso é expressão sem conteúdo, como demonstra a vida prática. Que se vá à tipologia: bom senso servil, bom senso médio... tudo representa uma longa viagem ao mundo da fantasia, especialmente quando se pretende movimentar a expressão em terras judiciárias. Para mim, não existe expressão mais casuística, que sofre tanto os influxos das fases da lua! Data venia (é assim que se diz?)

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