“É
danoso, o sonho. E é inútil sonhar; é preciso suportar a chatice do serviço.
Mas acontece que a vida despontará em outra dimensão, e o grandioso se
estenderá através da ninharia” – Maiakóvski
“Os
erros de um sábio fazem a tua regra, não as perfeições de um idiota” – William Blake
Outro
dia mamãe disse, sem cerimônia, que eu sou um suicida nato. Ela acredita que eu
não seja mais capaz de administrar minha revolta com o mundo em que escolhi viver.
Ela não consegue compreender porque não fujo das cenas de violência e injustiça,
logo eu, segundo ela, que sou um sujeito viciado em justiça e paz. Pior ainda,
ela me disse que eu não pareço seu filho, e, irritada, me perguntou o nome
daquele exame capaz de afastar toda dúvida sobre a paternidade. Eu disse: __ É
DNA, mamãe!
Depois
de um longo silêncio, com toda sua sabedoria, mamãe me disse que não vai mais
ler meus textos, porque não gosta deles, já que contém maledicências, que a fazem
se sentir mal. Não parou aí: com olhos em riste, ela bronqueou: __ Você deveria
se conformar, meu filho! Desde que o mundo é mundo, há canibalismo na
humanidade! Você não tem como competir, porque seus sonhos são inofensivos!
Eu
gosto muito que mamãe fique em casa. Ela não precisa correr riscos porque nem
na padaria eu a deixo ir para comprar pão e leite. Ela apenas se deixa hipnotizar
pelos enredos novelescos que a televisão crava em seu cérebro frágil. Nas horas
vagas – que são tantas, já que ela está aposentada –, com jeito de borboleta
encouraçada, ela faz poesia açucarada, com pitadas de sal e ternura, capazes de
amolecer o coração já amolecido de gente apressada e sensível, que a louva como
um louva-a-deus guarnecido com colete à prova de inseticida.
Mamãe
precisa entender que minha escrita é profunda e impiedosamente introvertida.
Sou o sujeito mais inconformado que existe dentro de mim. Não falo mal de
pessoas, nem há em mim nenhum heroísmo. Minha crítica é endereçada aos defeitos do sistema. A
ingenuidade e a desobediência tatuam indelevelmente minha natureza. Cada
palavra minha tem vontade de me convencer de que a lua é linda apesar do fétido
odor de queijo velho que ela exala. A única verdade séria que me habita é a de
que não sou um conformista. Nunca quis a alta-estima da cúpula nem almejo a cópula
com seus perfumes exagerados. Por isso, recuso vassalagem, nem me deixo coagir
pelas opiniões de massa. Além do mais, nunca desconheci que o establishment gosta bem mais dos
conformistas do que dos inconformados. Enfim, não estou nem aí para o paraíso,
que jamais será integralmente coletivo, porque a vocação seletiva é inerente tanto
ao ser humano quanto à divindade.
Ôh,
mamãe, entenda: a leniência, na maioria das vezes, é desastrosa e trágica.
Lembre-se de Albert Speer, que foi um dos conselheiros de Hitler. Em suas
memórias, ele diz que as pessoas próximas do ditador formavam um círculo de
absoluta conformidade. Não havia espaço para divergências. Em tal atmosfera, até
as decisões mais bárbaras do Fuhrer contavam com aprovação e, sob o status da
razoabilidade, a ilusão de unanimidade imperava. Nesse contexto, a
possibilidade de outras ideias surgirem, boas ou más, era natimorta.
O câncer
é resultado da indiferença e da negligência!
Mamãezinha,
eu imploro, aceite-me assim mesmo, ainda que eu não consiga voltar as costas à
realidade. Até o último suspiro eu vou lutar para que a sociedade não seja indiferente,
para que alguns juízes não sejam egoístas, para que tantos advogados sejam éticos. Querer um
mundo melhor não pode ser visto como uma ofensa minha a ninguém. Pobre coitado de mim!
Eu
acabei me lembrando de que antes de comprar meu ingresso para essa luta, por
conta de todo aquele estresse, na madrugada anterior ao evento, veio em mim uma
overdose de pesadelos. Eu sonhei que o sistema entrou no meu intestino, que passou
a ser seu hospedeiro. Quando fui escovar os dentes, vi-me em um espelho
metafísico, que não obedece à lei da ótica (ele reproduz a imagem do ser como é
visto pela pessoa que está na sua frente): eu tinha acabado de ser convertido no mais cordato dos zumbis. Atrás de mim, mamãe libertou um sorriso feliz e orgulhoso.
No
segundo pesadelo, o árbitro quis suspender a luta. Enquanto o sangue escorria copiosamente no rosto machucado do lutador Anaclínio
Conceição, o árbitro se mostrava profundamente preocupado
com um pequeno hematoma que nascia, que nem espinho, no dedão do pé esquerdo do general campeão.
Veio
em mim um desesperado e urgente pedido para os céus: __ Deus, mande esse maluco começar logo o
quinto round. Essa luta não pode ser interrompida; ela já dura mais de 50 anos e precisa chegar até o fim.
Eu paguei o ingresso da esperança de que o milagre da justiça seja feito hoje, sem
mais delongas!
Oscar Wilde escrevendo sobre o bom senso disse "Nos tempos que correm a maior parte das pessoas morrem de uma espécie de bom senso servil e descobrem demasiado tarde que não existem mais do que irremediáveis erros." No meu humilde entendimento, alguem de bom senso, muitas vezes erra para que o "mundo"
ResponderExcluiracerte.
No meu humilde entendimento, bom senso é expressão sem conteúdo, como demonstra a vida prática. Que se vá à tipologia: bom senso servil, bom senso médio... tudo representa uma longa viagem ao mundo da fantasia, especialmente quando se pretende movimentar a expressão em terras judiciárias. Para mim, não existe expressão mais casuística, que sofre tanto os influxos das fases da lua! Data venia (é assim que se diz?)
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