"Sócrates é meu amigo, mas sou mais amigo da verdade"
- Aristóteles
É
proibida a entrada de anjos-da-guarda! Acesso livre para autores e réus da ação
acompanhados de seus respectivos algozes! É obrigatória a presença de juízes de
verdade! Tolera-se, no entanto, a permanência de um arremedo de magistrado!
Eu fecho os olhos e
vejo anunciado todo esse fraseado na porta da sala de audiências, que se abre
para mim, rangendo, lentamente, ao estilo Hitchcock. Logo percebo que lá dentro
se encontra todo o instrumental necessário para a realização de um banquete.
A voz
proeminente diz que o acordo sempre é a melhor solução, porque é capaz de
equilibrar os interesses com equidade. A voz opressora faz de conta que a
conciliação não a agrada e apressa-se em sustentar a dificuldade de pagar o que
deve para reivindicar, em seguida, o parcelamento do débito. A voz oprimida e
apavorada tem pressa de pagar contas e sustentar a família. Nas vozes que
representam os desafetos não há esgrima: sinto que os advogados são camaradas
perfeitamente entrosados, unidos na alegria e na tristeza, para entoarem um
cântico em proveito de interesses comuns.
O
coral uníssono acaba por extorquir a adesão da voz do suor que, frágil e trêmula,
desarmou o estilingue, e ficou silenciosa e vencida pela exigência da
conciliação. A voz bruta tem pressa de encerrar a audiência porque ainda há muita
garganta com vontade de contar histórias.
O
acordo foi homologado: a empresa vai pagar dez mil reais parcelados em dez
vezes, com depósitos na conta bancária da voz engravatada, que ainda receberá
outros dois mil reais só para si. Todos – à exceção da voz sem voz –, deixam a
sala de audiências como se fossem participar de uma propaganda de creme dental:
escancaram sorrisos musicais de orelha a orelha.
O
advogado ajustou honorários líquidos e certos de 30% sobre o valor levantado
de todos e quaisquer direitos pleiteados, inclusive seguro desemprego e Fundo de Garantia. Pior: fez constar, no contrato, cláusula que autorizava que os honorários advocatícios fossem descontados integralmente nas primeiras
parcelas. Com isso, dos dez mil reais que a voz esfaimada tinha para receber, os três mil iniciais pertenceriam à voz insensível.
Ao final, a voz gananciosa teria cinco mil reais para receber, sendo que as três primeiras parcelas do acordo
serão revertidas para seus cofres. Enquanto isso, a voz do tralhador não vai ter
coragem de contar para ninguém que vai ficar com pouco mais de quatro mil
reais, engasgada por ter acreditado na existência de ética profissional e de
uma justiça mais justa e equitativa (com o tempo, vou acabar me acostumando a
não ficar mais vexado em assistir cenas jurídicas de canibalismo).
Parabéns, Fan Ghór! Vc consegue ver muito além dos horizontes e soube bem detectar nuances da relação trabalhador e advogado canibal!
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